Lição de casa
Esses dias eu peguei para ajudar meu filho a fazer a lição de casa, que era basicamente reescrever um texto, colocando a pontuação e organizando em uma ordem que fizesse sentido.
O grande problema era que o texto era copiado com a letra dele, e ele me falou, todo triste, que ficou com a letra ruim e mais sem sentido do que realmente era, porque estava com pressa de copiar.
Mas eu olhei pra ele e falei que tudo bem, que íamos ver isso, e que eu sabia que a letra dele não é das melhores.
Antes de ler o texto, falei com ele sobre a letra — não julgando, não criticando, mas tentando explicar por que era importante não ter uma letra extremamente bonita, mas sim uma letra legível e funcional.
Para exemplificar, peguei minha velha caixa de tênis recheada de letras de músicas que eu tinha escrito em folhas de fichário nos tempos de adolescente.
Mostrei para ele a minha letra — meio esquisita, meio corrida, mas legível —, porém com algumas características próprias em certas letras, algo que, de certa forma, todo mundo tem.
Pedi para ele ler, e ele leu algumas. Teve óbvias dificuldades em algumas palavras, mas depois releu, reconheceu e conseguiu seguir.
Foi então que eu expliquei pra ele o porquê de eu não poder criticar a letra dele dizendo que era feia, mas sim dizer que eu não estava entendendo o que ele tinha escrito.
Parece que um peso saiu das costas dele. Voltamos ao caderno para, aí sim, fazer a lição de forma mais tranquila — e seguimos.
Li a história, que estava com os parágrafos estranhos e algumas pontuações faltando, e perguntei como ele tinha copiado.
Pensei que a professora tivesse escrito na lousa e deixado lá por um tempo, como na minha época, mas ele respondeu que a professora pegou o texto no celular, colocou no projetor ou algo assim, deixou lá um tempo e depois simplesmente tirou.
Bom, quem sou eu pra julgar? As coisas mudam com o tempo, e cada época tem sua maneira de fazer o aluno copiar correndo.
Voltamos ao texto. Começamos. Peguei o primeiro parágrafo e perguntei se fazia sentido colocar aquilo como primeiro.
Ele falou que sim. Pedi para ele escrever.
Achei engraçado o cuidado de medir com o dedo a distância do início do parágrafo. Ele estava se esforçando, entendendo.
Então deixei. Estamos em casa, leve o tempo que precisar.
As letras começaram a sair absurdamente melhores do que as da aula.
Pedi para ele parar e comparar as duas letras — e ver como a que ele estava fazendo era muito melhor.
Ele concordou.
Falei: “Tá vendo como você consegue fazer de boa?”
Ele ficou mais animado e seguiu.
Chegou a hora de colocar uma vírgula.
Como ele não entendia muito bem, expliquei de forma tranquila que a vírgula era um respiro.
Usei exemplos, apontei objetos na sala, pedi para ele dizer os nomes, e depois expliquei que, no texto, cada um daqueles objetos era separado por uma vírgula — a mesma pausa que ele fazia ao falar.
Depois disso, ele engrenou.
Chegou ao final do parágrafo, me olhou e perguntou:
“Acabou, então é ponto final, certo?”
Eu só fiz que sim com a cabeça, e fomos para o segundo.
Fizemos isso por um tempo, até que ele começou a escrever mais rápido e mantendo a letra praticamente igual.
Elogiei. Mostrei que ele estava escrevendo muito mais rápido e com a letra ainda boa.
Ele falou que se lembrou da minha letra — e confesso que fiquei orgulhoso. Acho que, de certa forma, deu certo o que eu queria mostrar pra ele.
Terminamos o dever.
Falei que ele podia voltar a jogar, que eu iria tomar um banho, já que tinha chegado do trabalho e cortado as unhas dele (ele só deixa eu cortar as unhas dele), feito o dever (ele já tinha jantado na casa da minha mãe).
Então ele me disse:
“Eu gosto de fazer dever com você. Você é muito mais paciente e me explica as coisas. Não parece ficar irritado quando eu erro.”
Respondi:
“Por que eu ficaria irritado quando você erra? A gente erra o tempo todo. E eu não quero que você seja o melhor da sala — quero que você entenda o porquê das coisas. E outra, você viu minha letra — ela é uma merda, mas dá pra entender o que eu tô querendo dizer, então maravilha.
E mais: se você mantiver a letra meio merda, quem sabe não vira médico?”
Ele riu, e começamos a falar sobre jogos e outras coisas.
Mas o assunto logo virou para sentimentos, astronomia, confiança, o divórcio, culpa.
Eu não poupo ele dos temas que ele me pergunta.
Claro, não falo com requintes de crueldade, não falo absolutamente tudo.
Algumas coisas eu digo que ele vai entender quando for mais velho.
O que ele precisa saber é que não tem problema se sentir triste, não tem problema sentir as coisas do jeito que são.
Ele é um ser humano — e independe da minha vontade o que ele sente ou não.
Mas que ele saiba que eu, como pai, estou ali para ouvir. Talvez não entenda tudo, mas ouço tudo o que ele quiser dizer.
E, acima de tudo, que a culpa de nada em relação ao divórcio é dele.
Ele foi me falando as coisas, e eu respondendo e contando o que eu sentia, o que já senti — algumas coisas parecidas com as que ele sente hoje.
De certa forma, pra ele entender que não está sozinho no mundo.
Pelo menos não enquanto eu estiver vivo.
Depois disso, falei pra ele que ele era livre.
Claro que eu imponho alguns limites e sou chato às vezes com algumas coisas — não só por ele, mas pelo mundo que o cerca.
Falei também o porquê de eu ter ensinado palavrões, o porquê de eu não censurar os jogos que ele quer jogar.
Claro, tem coisas que eu controlo de perto, mas sem mostrar que faço isso, pra ele se sentir tranquilo.
Depois de horas de conversa, ele foi jogar Forza Horizon 5 e ficou lá, até me perguntar alguma coisa sobre os carros e me pedir ajuda pra decidir o modelo ideal pra montar um novo carro de drift.
Eu o ajudei e deixei jogando até tarde.
Ele tinha feito o dever, tinha falado sobre os sentimentos comigo — enfim, ele merecia.
Eu iria com sono pro trabalho no outro dia, mas foda-se.
No dia seguinte, falei com a mãe dele sobre o que conversamos — o que ele me disse (o que ele não pediu pra eu não contar, óbvio) — e o teor e a profundidade da conversa.
Ela precisa saber. Ele passa a maior parte do tempo lá, é justo compartilhar o que ele sente pra sabermos como agir.
Pedi pra ela elogiar a letra dele quando chegasse em casa.
Então ela me mandou a frase:
“Sou muito feliz por você ser o pai dele.”
Eu li, agradeci e não falei mais sobre isso.
Mas, dentro de mim, um sentimento de tranquilidade e orgulho.
Sou humano. Tenho ego, tenho orgulho.
Não me guio por eles — ou, pelo menos, tento a maior parte do tempo não me guiar por eles.
Mas, dentro de todas as derrotas que conheço e documento, essa é a real vitória pra mim:
ver que estou tentando ser o melhor pai que posso.
Sendo quebrado, errado em muitas coisas, falhando constantemente — mas sendo real.
Pra que as coisas que me quebraram não precisem transformar o meu filho em um perdedor,
mas em um ser humano livre — que pode, inclusive, não gostar de mim quando souber 100% do que eu sou e entender as coisas de adulto que hoje ele não precisa se preocupar.
Obs: Ele me pediu um violão e quer que eu ensine ele a tocar.
Ele escolheu o modelo e é o presente de Natal dele.
Perguntei por que escolheu aquela cor, e ele respondeu:
“É porque é da mesma cor do seu, e eu gosto.”
Música: Suburban Home – Descendents


Excelente, Marcelo! Para mim, o seu melhor texto desde que o acompanho. Você foi extremamente feliz e eficiente ao colocar todos esses sentimentos “no papel”.
Como pedagoga isso me deu um quentinho no coração! A letra tem que ser suficientemente boa para que todos compreendam e não perfeita. A gente cresceu em um ambiente tão tóxico, na escola, na família... eu sofri bulling dentro de casa, então ver um pai ser tão incrível, é de mais! A gente cresceu se sentido totalmente inadequados, nossos filhos n precisam passar por isso. Vc realmente é um pai exemplar.